Aplicação de mecanismos tradicionalmente penais em casos de competência da justiça eleitoral
A aplicação de mecanismos penais e processuais penais para apuração de crimes eleitorais é indiscutível, afinal, são condutas de relevância penal com conexões eleitorais.
Em ano de eleição, é notório o acúmulo de notícias sobre o deferimento de meios de obtenção de prova em investigações policiais envolvendo crimes eleitorais. Isso ocorre, inclusive, pela própria natureza de alguns crimes eleitorais, que exigem, em muitos casos, essas medidas para sua comprovação, sendo frequente o deferimento de medidas de busca e apreensão de materiais de propaganda eleitoral caluniosos ou difamatórios (crimes previstos nos artigos 323, 324 e 325 do Código Eleitoral) e a quebra de sigilo bancário e fiscal no crime de corrupção eleitoral (art. 299 do Código Eleitoral).
Os meios de obtenção de prova mais comuns são a busca e a apreensão (disciplinadas pelo Código de Processo Penal), a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas (disciplinada na Lei 9.296/1996), a quebra de sigilo financeiro (disciplinada pela Lei Complementar n. 105/2001) e a quebra de sigilo fiscal (autorizada no artigo 198 do Código Tributário Nacional), além de outras medidas previstas na legislação esparsa.
Muito embora esses meios de obtenção de prova sejam mais utilizadas e possuam regramentos específicos para seu uso em processos penais, a Justiça Eleitoral as tem deferido nas denominadas ações de investigação judicial eleitoral.
Assim, na prática, os elementos colhidos nessas ações que avaliam ilícitos eleitorais, podem ser utilizados como provas para embasar denúncias criminais. Tratando-se de condutas que podem configurar, ao mesmo tempo, ilícitos eleitorais e crimes, a utilização de meios de obtenção de prova tipicamente penais pode se embasar na suspeita do cometimento do ilícito penal.
Tanto é assim que o próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE) possui diversos precedentes acerca da possibilidade de quebra de sigilos (bancário, fiscal, telemático, telefônico) na apuração de crimes eleitorais e conexos.
A questão é mais controversa com relação à possibilidade de quebra de sigilo em caso de ilícitos eleitorais, pois a Lei Complementar n. 64/1990 (LC 64) prevê a possibilidade de ajuizamento de ações de natureza eleitoral a fim de apurar:
(a) abuso de poder econômico;
(b) abuso de autoridade; ou
(c) utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social em benefício de candidato ou partido político.
De acordo com a LC 64, se julgadas procedentes, essas ações podem resultar:
(i) na inelegibilidade do candidato;
(ii) na cassação de seu registro ou diploma, caso eleito;
(iii) na instauração de processo disciplinar;
(iv) no início de ação penal.
Nesse aspecto, condutas que configuram ilícitos eleitorais têm gerado um campo fértil para obtenção de provas que poderão ser posteriormente utilizadas em ações penais.
Isso porque o próprio TSE tem permitido a adoção de medidas como quebra de sigilo, notadamente fiscal e bancário, em situações que apesar de configurar ilícitos eleitorais, não necessariamente configuram crime (comum ou eleitoral), como na hipótese de doações irregulares em campanha eleitoral.
Cita-se, nesse sentido, o decidido no AgRg-RMS n. 47-49.2017.6.26, no qual o TSE reformou um acórdão do TRE de São Paulo, para deferir uma quebra de sigilo bancário da conta bancária de uma doadora de campanha que teria feito uma doação acima do montante legal, por meio de pessoa interposta. A peculiaridade desse julgamento é que o Ministério Público Eleitoral (MPE) pediu a quebra de sigilo bancário e fiscal de uma testemunha arrolada pela representada, testemunha que teria feito a doação. O voto do Ministro Edson Fachin, que liderou a votação, afirmou ser lícito ao MPE solicitar diretamente à Receita Federal informações a respeito do doador e, com base nisso, requerer judicialmente o afastamento do sigilo bancário[1].Meios de obtenção de prova são instrumentos bastante utilizados para a obtenção de elementos de prova em processos de natureza penal, sendo medidas que podem ser requeridas em caráter antecedente – por meio de medidas cautelares – ou em caráter incidental.
Esses meios sempre dependem de decisão judicial fundamentada para que sejam deferidas, pois invariavelmente envolvem, em menor ou maior grau, a violação de direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, como o direito à intimidade, à inviolabilidade do sigilo telefônico, à inviolabilidade do domicílio, dentre outros.
A questão é quando a conduta configura ilícito eleitoral, mas não há, naquele momento e com aqueles elementos, indicativos do cometimento de um crime. Seria cabível a aplicação de meios de obtenção de prova tão invasivos como quebra de sigilo bancário, fiscal, busca e apreensão? Sob qual fundamento legal se daria essa possibilidade já que não há um crime sob investigação?
E mais, os elementos colhidos nessa medida – originária de um ilícito eleitoral – poderão apontar um crime do qual antes sequer se suspeitava e embasar o início de uma ação penal. Porém, como fica validade da prova colhida no estágio onde sequer havia a suspeita de um crime? A suspeita de um ilícito eleitoral – que a princípio não configura crime eleitoral – é suficiente para autorizar judicialmente a utilização de meios de prova tão invasivos?
Se sim, o mesmo vale para qualquer outro tipo de ilícito, ilícito administrativo, por exemplo? Se não, qual é a consequência penal desse compartilhamento de provas?
São questões que apesar de surgir em época eleitoral, arrastam suas consequências para além do período eleitoral, inclusive para além dos mandatos dos eleitos.
[1] No mesmo sentido o julgamento da AgRg-Respe n. 26375, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, e no ED-AgRg-AI n. 5779, de relatoria da Min. Luciana Óssio.